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Condições Nervosas na #BibliotecaAllPress

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Todo bom escritor sabe que as primeiras linhas podem ser essenciais para a construção de uma obra de qualidade. Todo autor medíocre também sabe disso. A diferença é que uns conseguem concentrar drama, graça, suspense, dor, amor ou estranheza já de saída. Outros – os sem talento suficiente – escrevemos e reescrevemos, matutamos e matutamos, mas não vamos além de um gracejo ou de uma “sacada” nada genial.

Para aqueles que alimentam certo fetiche por aberturas de livro, não faltam opções por aí. O velho Marx tascou o histórico “Um espectro ronda a Europa – o espectro do comunismo. Todas as potências da velha Europa unem-se numa Santa Aliança para conjurá-lo: o Papa e o Czar, Matternich e Guido, os radicais da França e os policiais da Alemanha”. Pronto: o leitor está avisado que dali em diante o que vem no Manifesto é chumbo grosso.

Outro Marques comunista, o Gabriel, conquistou o mundo com seu “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendia haveria de recordar aquela data remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”. Linhas depois ele acrescenta que o mundo era novo e muita coisa carecia de nome, o que ajuda a construir o clima mágico das tantas e tantas páginas de Cem Anos de Solidão.

O colombiano é responsável ainda por outra abertura célebre: “No dia em que o matariam, Santiago Nassar acordou as 5h30min da manhã para esperar o navio em que chegava o bispo”. O rapaz havia tido sonhos tranquilos, mas acordou cagado de pássaros.

Outro jovem que acordou sobressaltado e virou abertura de livro clássico foi o Gregor Sansa, que acabou transformado em inseto pelo Kafka. O inusitado das primeiras linhas só ganha em intensidade e estranheza nas páginas um tanto trágicas da obra.

Aqui a prova de que uns e outros não são bons em aberturas. Lá se foram três parágrafos de exibição pernóstica e o texto não chegou ao lugar esperado. O ponto é um só: afirmar que, como os grandes clássicos, Condições Nervosas é cativante e surpreendente desde a abertura: “Não lamentei quando meu irmão morreu. Também não estou me desculpando por minha indiferença, como você poderia descrever, minha falta de sentimento”.

Tsitsi Dangarembga, a autora, passa ao lado das primeiras linhas do O Estrangeiro: “Hoje mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei. Recebi um telegrama do asilo: “Mãe morta. Enterro amanhã. Sinceros sentimentos.” Isso não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem”.

Mas a partir desse ponto os livros traçam rumos totalmente diferentes. O franco argelino Camus segue em um mundo existencialista, onde as coisas acontecem sem muito sentido. O homem está abandonado por aqui, levado de um lado a outro pela maré da vida, sem muita esperança ou poder de mudar a realidade – e também sem interesse em enfrentar o absurdo da existência.

Tambudzay, a narradora de Condições Nervosas, não está disposta a deixar o mundo como ele sempre foi. Ela acredita que é possível mudar o próprio destino – e para isso vai seguir uma jornada própria em busca da educação muitas vezes negada às mulheres. Já sua prima Nyasha crê que é possível ir além, enfrentar o status quo e a tradição, o que parece infinitamente mais difícil. Cabe a ela alertar para a estranheza de hábitos machistas e de práticas colonialistas que insistem em perdurar.

Nyasha sofre – e não é por acaso. Condições Nervosas se passa na Rodésia (hoje Zimbabwe) dos anos 60. O país deixou há pouco de ser colônia inglesa e enfrenta a pobreza extrema. A situação é ainda mais complicada para as mulheres, que sofrem sob um tradição patriarcal das mais arcaicas.

Aqui e ali mulheres começam a se rebelar, ainda que de forma tímida, contra as tradições. Rebelião, diga-se, que é condenada até mesmo por outras mulheres (quem leu um jornal nos últimos dias há de perceber como o machismo entranhado nas pessoas pode ser danoso e cruel). Nessa tensão entre a inadequação e o conformismo talvez resida a grande força de um livro marcante da literatura africana moderna.

Tsitsi foi uma pioneira com a obra lançada em 1988 – e que chega ao Brasil com grande atraso. Infelizmente os outros livros da autora ainda não estão por aqui. Fica a torcida por uma tradução rápida.

O ano é 1964. O mês, abril. Os militares recém concretizaram um golpe de Estado contra o Governo de João Goulart e tomaram o poder com reação tímida da população e da imprensa. Quase sozinho, Carlos Heitor Cony, autor da coluna “Da Arte de Falar Mal”, bate duro nos golpistas. A “revolução dos caranguejos”, como ele chama, representa um atraso na história do País, um atentado contra as liberdades e os planos desenvolvimentistas nacionais encarnados em figuras como as dos ex-presidentes JK e Getúlio Vargas. Seus líderes são “gorilas”, que transformam a delação em política de estado e afrontam direitos elementares ao prender cidadãos “subversivos” sem provas ou julgamentos.

O livro que reúne esses textos – O Ato e o Fato – é um documento interessantíssimo dessa época e da atuação do jornalista e cronista. Editorialista e cronista do Correio da Manhã, veículo profundamente crítico ao governo Jango, ele já mostrou em seu primeiro texto de abril, um dia após o Golpe, que as coisas seguiam no rumo errado. A partir dali, manteve-se durante meses na crítica aos militares (foi alvo de um processo movido pelo então Ministro da Guerra Arthur da Costa e Silva).

Os textos de O Ato e o Fato mostram um cronista corajoso, crítico e defensor de um humanismo que deve ter sido adquirido nos tempos de seminário, onde ficou dos 12 aos 19 anos.
Humanista e aparentemente pouco preocupado em agradar. Cony já foi alvo de críticas variadas. Há quem diga que os editoriais do Correio da Manhã do período anterior a abril de 64, duríssimos na crítica ao Governo, contribuíram com o Golpe. As crônicas reunidas em O Ato e o Fato colaboraram para melhorar a imagem do autor junto à esquerda, isso até ele queimar algumas pontes quando lançou Pessach: A Travessia, um ótimo livro que desagradou profundamente aos defensores da luta armada contra os militares. Poucos anos depois, em 74, Cony lançaria Pilatos, sua obra-prima. Um livro absurdo e fantástico que segundo a orelha é uma “advertência aos que, julgando-se felizes, são apenas desinformados”.

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Sobre o autor:

Rogério Kiefer ( @rogeriokiefer) é jornalista e sócio-diretor da All Press Comunicação.