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É isto um homem?

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Esqueça os vírus, as bactérias, as doenças infecciosas ou qualquer animal. Quando se trata de degradar ou destruir um homem, nenhum ser é capaz de superar outro homem. Os exemplos são variados e estão nos livros de história, nas revistas e no telejornal da noite. Mas esse poder destrutivo toma ares de tragédia quando transformado em ação de grupos políticos, como ocorreu em guerras na África, na Iugoslávia e – mais conhecido dos tristes exemplos – durante o nazismo. A Biblioteca All Press da semana trata de um livro fenomenal: É isto um homem?
Escrito pelo italiano Primo Levi entre os anos de 1945 e 1947, o texto é desolador da primeira a última página. No início, um poema com o mesmo título do livro dá o tom do que virá pela frente:

Vocês que vivem seguros
Em suas cálidas casas,
Vocês que, voltando à noite,
Encontram comida quente e rostos amigos,
Pensem bem se isto é um homem
Que trabalha no meio do barro, que não conhece paz,
Que luta por um pedaço de pão,
Que morre por um sim ou por um não.
Pensem bem se isto é uma mulher,
Sem cabelos e sem nome,
Sem mais força para lembra,
Vazios os olhos, frio o ventre,
Como um sapo no inverno.
Pensem que isto aconteceu:
Eu lhes mando estas palavras.
Gravem-nas em seus corações,
Estando em casa, andando na rua,
Ao deitar, ao levantar;
Repitam-nas a seus filhos.
Ou, senão, desmorone-se a sua casa,
A doença os torne inválidos,
Os seus filhos virem o rosto para não vê-los.

A partir daí, a obra narra a prisão de Levi e um grupo de prisioneiros que pretendiam resistir ao fascismo italiano, sua deportação para o campo de concentração na Polônia e os terrores vividos até a libertação com a chegada dos russos. Sem identidade, chamados apenas pelo número tatuado em seus braços, milhares de homens e mulheres são humilhados, ameaçados e subjugados. Pior: em condições extremas (frio, fome, privação do sono e de descanso e trabalho em condições sub-humanas) parecem perder a consciência da própria humanidade, afinal os vultos sem cor e voz que andam de um lado para o outro na narrativa de Levi são mortos-vivos apenas à espera do tiro, da câmara de gás ou da forca.
A vulgaridade da morte é assustadora. Levi conta um episódio das chamadas seleções, quando um oficial da SS definia quem iria morrer em poucos dias na câmara de gás ou viver mais algum tempo.

A cena começa com os prisioneiros trancados em um pequeno ambiente. Eles devem sair por uma porta e entrar em outro espaço por outra, pouco distante da primeira:

“Cada um de nós, ao sair, nu, da peça nos ar frio de outubro, deve passar correndo entre uma porta e outra, na frente dos três (os responsáveis por definir quem vive ou morre); entregar a ficha ao SS e entrar pela outra porta, a do dormitório. O SS, na fração de segundo entre as duas sucessivas passagens, com uma olhadela de frente e outra de costas, julga a sorte de cada um e por sua vez entrega a ficha ao homem à sua direita ou à sua esquerda – e isso é a vida ou a morte de cada um de nós. Em três ou quatro minutos, um alojamento de 200 homens está “feito” e, à tarde, todo o Campo de 12 mil homens”. Primo Levi foi deportado com 650 judeus. Desse grupo, três sobreviveram.

Todo esse horror, no entanto, não mudou algo fundamental: Primo Levi, morto em 1987, não era o espectro no qual se transformou durante os anos no Campo. Ele era um homem – e um homem que assumiu postura admirável. Ele faz a denúncia do próprio sofrimento, do sadismo dos homens que tinham algum poder no Campo, mas não escreve um manifesto à vingança ou à intolerância. Em vez disso, faz algo maior – indo além até da ótima literatura – e revela características da alma humana que talvez preferíssemos ignorar.

Vale citar o que ele mesmo escreve no prefácio: “Ele (o livro) não foi escrito para fazer novas denúncias; poderá, antes, fornecer documentos para um sereno estudo de certos aspectos da alma humana. Muitos, pessoas ou povos, podem chegar a pensar, conscientemente ou não, que “cada estrangeiro é um inimigo”. Em geral, essa convicção jaz no fundo das almas como uma infecção latente; manifesta-se apenas em ações esporádicas e não coordenadas; não fica na origem de um sistema de pensamento. Quando isso acontece, porém, quando o dogma não enunciado se torna premissa maior de um silogismo, então, como último elo da corrente, está o Campo de Extermínio”. Ou seja: é preciso lembrar sempre para que nunca se repita.

Sobre o autor:

Rogério Kiefer ( @rogeriokiefer) é jornalista e sócio-diretor da All Press Comunicação.